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Mundo: O caso do padre pedófilo que desafia o Papa

O sacerdote Julio Grassi chega em agosto de 2008 a um tribunal de Morón, perto de Buenos Aires. EFE
Era o padre preferido dos ricos. Um autêntico astro da mídia, o religioso mais famoso da Argentina. Desfilava por todas as televisões nos anos noventa, seu grande momento. Com apoio do Governo de Carlos Menem e de algumas das pessoas mais ricas da Argentina, como Amalita Fortabat, Julio Grassise movia cômodo pelos sets de gravação e arrecadava enormes somas de dinheiro para sua fundação, Felices los Niños (“felizes as crianças”), que chegou a acolher 6.300 menores de rua. Eram tempos duros de ajuste, quando era comum ver crianças sem lar em Buenos Aires. Em 2002, veio o escândalo. O país parou para ver um programa de investigação na TV, o Telenoche, no qual três dessas crianças carentes, que tinham entre 14 e 16 anos de idade e dependiam de Grassi para tudo, contaram os abusos sexuais aos quais ele os submetia. A Argentina emudeceu.

Naquele dia começou uma enorme batalha de poder, com todos os ingredientes habituais de um país acostumado às operações encobertas: espionagem, ameaças, chantagem. Grassi se defendeu com dureza: recorreu a todos seus contatos para alegar inocência, contratou os melhores advogados, e mesmo quando entrou na prisão − em 2013, 11 anos depois − obteve um tratamento privilegiado graças a seus contatos e ao dinheiro da fundação. Mas finalmente a justiça o derrotou: a Corte Suprema argentina confirmou em 23 de março sua sentença de 15 anos de cadeia por abuso sexual com agravante e corrupção de menores.

No entanto, o caso tem um contorno ainda maior. Apesar da política de tolerância zero com os padres pedófilos impulsionada pelo Vaticano, ainda hoje, 15 anos depois da denúncia da TV, Grassi continua sendo padre e usa o colarinho clerical na prisão. O sacerdote afirma que a Igreja ainda o apoia e diz ter o respaldo de ninguém menos que o papa Francisco, Jorge Mario Bergoglio, que era o chefe da Igreja argentina na época do escândalo.

“Bergoglio nunca soltou minha mão. Falo com ele, ele me apoia muito espiritualmente e acredita em mim”, chegou a dizer. Alguns afirmam até mesmo que Bergoglio era seu confessor. Pessoas ligadas ao Papa desmentem essa versão. Admitem que alguma vez Bergoglio pode ter ouvido a confissão de Grassi, mas garantem que isso não era nada estabelecido e os dois não tinham uma relação tão estreita.

O papa nunca disse uma palavra sobre o assunto, nem antes nem depois de ser eleito. “Não apoiou Grassi, não foi visitá-lo na prisão, mas não falou porque não era seu bispo [pertence a Morón, nos arredores de Buenos Aires] e porque havia muitas dúvidas a respeito da culpabilidade. Por trás desse escândalo houve uma operação econômica dos rivais de Grassi em negócios importantes, não estava claro se era uma operação de inteligência”, assinala um religioso argentino ligado ao pontífice. Com relação a outros casos, fora da Argentina, Francisco se mostrou mais próximo das vítimas. Neste, porém, nunca se aproximou delas, apesar de estas terem lhe enviado várias mensagens − às quais não respondeu.

Na Secretaria de Comunicação da Santa Sé explicam que Bergoglio nunca quis se intrometer em um assunto que estava judicializado. “A resposta do Papa é sempre incisiva: máximo respeito à justiça civil, tolerância zero com os culpados e apoio absoluto às vítimas”, asseguram. Além disso, em relação ao apelo das vítimas para que Grassi deixe de ser padre e seja convertido em leigo, assinalam que “a Congregação para a Doutrina da Fé está, exatamente nestes dias, dando as indicações precisas e terminando de examinar a situação para adotar uma resolução definitiva”.

“A eleição do papa Francisco foi recebida com expectativas muito boas pelo mundo, a Igreja tomou uma posição clara sobre a pedofilia. Mas as vítimas de Grassi esperam que [o Papa] diga algo. Uma delas lhe enviou uma carta pedindo que o recebesse e o ajudasse a recuperar a fé perdida com os abusos desse sacerdote, e solicitando também que rebaixasse [Grassi] à condição de leigo. Não houve resposta”, explica Juan Pablo Gallego, advogado das vítimas, que ainda hoje mantêm em segredo sua identidade.

“Em novembro de 2015, fui ao Vaticano e falei por alguns minutos com o Papa para lhe pedir que tenha um gesto para as vítimas”, conta Miriam Lewin, a jornalista que revelou o escândalo em 2002. “Ele me escutou e pensei que faria isso, mas nunca telefonou para as vítimas. Seu discurso contra a pedofilia é muito duro, mas deveria se refletir em fatos concretos neste caso. As vítimas precisam de uma reparação, um pedido de desculpas. Não se entende como Grassi pode continuar sendo padre. Francisco sabe que as feridas nas crianças são muito difíceis de curar, eles dependiam de Grassi para tudo, não tinham família. Agora algumas vítimas [de outros casos, como a irlandesa Marie Collins e o britânico Peter Saunders] abandonaram a comissão do Vaticano para a proteção dos menores. O Papa tem de fazer um gesto importante”, insiste Miriam Lewin.

Muitos na Argentina consideram que o pontífice apoiou tacitamente Grassi porque não acreditava que o sacerdote fosse culpado. De fato, Bergoglio encomendou e pagou ao jurista Mario Sancinetti um trabalho de 2.600 páginas, Estudos sobre o ‘caso Grassi’, no qual se concluía que o padre era inocente. Os advogados das vítimas consideraram isso um mecanismo de pressão sobre a Justiça. Mesmo em 2013, quando Grassi foi para a prisão, quatro anos depois da primeira condenação, o bispado de Morón o defendia: “Surgem dúvidas a respeito de sua culpa”, assinalou um comunicado oficial.

“O nível de provas no julgamento foi altíssimo, foram comprovadas características do órgão sexual do sacerdote que as vítimas conheciam. Ganhamos o julgamento contra um dos homens mais poderosos da Argentina. Era como um poder próprio dentro da Igreja. Teve 26 advogados de defesa, os melhores do país, os mais caros, algo nunca visto. Foi Davi contra Golias, e ganhamos porque ele era culpado”, afirma Gallego. O certo é que, com pressões ou sem elas, a Justiça argentina sentenciou definitivamente que Grassi abusou dessas crianças. E agora todos os olhares se concentram no Vaticano, e em Francisco, que foi incisivo em outros casos internacionais, mas tem um desafio enorme em sua própria casa, um país que ele continua acompanhando com muita atenção, mas decidiu não visitar por enquanto, inquieto pelas paixões, a favor e contra, que provocam todos seus movimentos.

UMA VIDA DE LUXO NA PRISÃO: INTERNET E BANHO PRIVADO

O padre Julio Grassi mostrou seu poder e seus contatos até mesmo depois de ser encarcerado. Em 2014, outra investigação da TV causou um novo escândalo. O programa de Jorge Lanata, Periodismo para todos, mostrou imagens da vida privilegiada do religioso na prisão, sempre vestido de padre. Os contatos − e o dinheiro − de Grassi tinham permitido que ele tivesse seu próprio escritório com computador conectado à internet, uma cama e banheiro privado. Estava perto da cozinha da prisão de Campana, a 80 quilômetros de Buenos Aires.

Tinha três telefones celulares, algo totalmente proibido, com os quais continuava dirigindo a fundação Felices los Niños − que, dos 6.400 menores da época de esplendor, passou a acolher 50 em situação especialmente delicada, órfãos ou protegidos de casos de violência familiar.

Além disso, em sua cela havia televisão e geladeira, algo impensável nas prisões argentinas. Mas o que causou mais escândalo foi a revelação de que Grassi desviava para a prisão em que está encarcerado parte das doações feitas à fundação. Ele dividia essa comida entre presos e agentes penitenciários, e com isso obtinha os evidentes privilégios que tinha na prisão. O escândalo foi tanto que o diretor do presídio foi destituído. O poder de Julio Grassi parece infinito.

(El País)

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